Conto: Pedra e Porcelana 1934
No dia seguinte, Giuseppe saiu de casa mais cedo. Mas não tomou o caminho da pedreira. Virou à esquerda na rua de terra que passava pelos fundos da Vila Bocaina e seguiu rumo à nova construção que se erguia com elegância e fumaça controlada: a Fábrica de Porcelana Mauá.

Vila Bocaina, Pilar – 1934
O dia ainda nem clareara direito quando Giuseppe Bertassi passou a mão no rosto, sentindo a barba por fazer e o suor da noite mal dormida. A marmita amassada estava pronta, com pão dormido e um naco de carne salgada, enrolada no pano de sempre. Era mais um dia de caminhada longa até a pedreira — aquela onde hoje, muitos anos depois, construiriam a Gruta de Santa Luzia.
O caminho era duro, sem calçamento. Giuseppe descia pela trilha de barro batido que hoje seria chamada de Avenida Barão de Mauá. Cruzava o matagal, passava por áreas com árvores retorcidas e riachos rasos, desviando das carroças e dos burros carregados de lenha e barro. Ao fundo, as chaminés das fábricas soltavam fumaça, e os galos cantavam nos quintais fundos das casas de madeira.
A pedreira era um monstro que devorava homens. O barulho das batidas contra a pedra, o calor, o pó fino que entrava pelos poros — tudo deixava o corpo em alerta constante. Giuseppe trabalhava como escarpelino, moldando paralelepípedos com precisão. Mas cada batida no cinzel era também um risco. E havia algo que ele já não conseguia ignorar: o medo.
Poucos dias antes, Otávio, um velho amigo da Itália que também havia vindo tentar a sorte em Pilar, perdeu a visão de um olho. Um estilhaço de pedra, pequeno como um dente de alho, voou com força e cravou-se fundo. Otávio caiu gritando, com sangue escorrendo pelo rosto. O cheiro de ferro no ar, os gritos e a pressa dos companheiros para levá-lo embora... aquilo não saía da cabeça de Giuseppe.
Naquela noite, sentado na varanda, ele falou baixo para Anita:
— “Não quero ser o próximo.”
Ela apenas assentiu, enxugando as mãos no avental. Sabia que ele já tinha decidido.
No dia seguinte, Giuseppe saiu de casa mais cedo. Mas não tomou o caminho da pedreira. Virou à esquerda na rua de terra que passava pelos fundos da Vila Bocaina e seguiu rumo à nova construção que se erguia com elegância e fumaça controlada: a Fábrica de Porcelana Mauá.
O portão era mais silencioso, o cheiro era diferente — barro cozido, argila, verniz e expectativa. Ali não se moldavam ruas, mas pratos, xícaras e tigelas que enfeitariam mesas até de famílias ricas de Santos ou São Paulo.
— “Você sabe moldar pedra?”, perguntou o encarregado.
— “Esculpo desde menino”, respondeu Giuseppe.
— “Então vê se consegue domar o barro.”
Colocaram-lhe um pedaço de argila crua na mão. Com delicadeza, Giuseppe moldou uma xícara com a mesma concentração com que antes talhava pedra. O silêncio foi maior que na pedreira. E, ao final, o chefe apenas disse:
— “Você começa na segunda.”
Na volta pra casa, Giuseppe sorriu sozinho pela primeira vez em semanas. Olhou as mãos — ainda firmes — e pensou nos filhos que agora poderia ver crescer com menos medo e mais tempo. Anita o esperava na porta, como sempre.
Na fábrica de porcelana, a poeira era mais leve, o risco era menor. Mas o orgulho do trabalho, esse, ainda era feito de pedra.
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